Leite Derramado
– Chico Buarque de Hollanda

O texto retrata a dificuldade do idoso memorizar fatos recentes e concatenar ideias de forma lógica e objetiva.

Mistura temas da história política brasileira com relatos, aparentemente sem nexo, com o intuito de mostrar o valor que tem a qualidade nas relações pessoais e a influência que estas produzem no bem-estar.

Os conflitos de valores vinculados a preconceitos sociais conflitam com sentimentos vividos pelo protagonista da história.

Neste ponto, Matilde, a inesquecível mulata que se tornou mulher de Eulálio Montenegro d’Assumpção, é apresentada com a pecha de tê-lo traído.

A inclusão de Matilde na história, com as características raciais descritas, tem como alvo sublimar preconceituosos e enaltecer a forma como são vistas as mulheres, mesmo quando são criadas em ambientes considerados nobres.

Subentende-se que Matilde pode ter fugido com o francês Dubosc, sem deixar vestígios, abandonando o marido e a filha Maria Eulália.

Apesar de ela ter a pele escura, o autor destaca que os seios são brancos, procurando contradizer, de forma simbólica, a lógica equivocada entre a cor da pele e os valores morais.

Expõe a personagem, quando aborda sobre o seu aguçado apetite sexual e o desinteresse por assuntos intelectuais, ao citar sobre a sua tímida postura nas reuniões sociais.

Em vários momentos, o autor utiliza-se do protagonista, com memória desfalecente e repetitiva, para relatar os encontros ocorridos antes do casamento.

O protagonista afirma que se sente responsável por ter despertado o apetite sexual em Matilde e que tem, em contrapartida, o sentimento de ser o maior homem do mundo.

Matilde e Eulálio

“Eu descia correndo e lhe abria a porta da cozinha, que Matilde apenas ultrapassava. Encostava-se na parede da cozinha, a respiração curta, e me arregalava os olhos negros. Em silêncio nos olhávamos por cinco, dez minutos, ela com as mãos na altura dos quadris, agarrando, torcendo a própria saia. E corava pouco a pouco até ficar bem vermelha, como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol. Via seus lábios entreabrirem, e acima deles brotavam umas gotículas de suor, enquanto suas pálpebras devagar cediam. Enfim eu me jogava contra o corpo dela, pressionava o corpo dela contra a parede da cozinha, sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas, por algum acordo jamais expresso. Com meu tronco eu a esmagava, quase, até que ela dizia, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto.”

O moribundo e a enfermeira

No leito de um hospital, o moribundo Eulálio Montenegro d’Assumpção narra a sua história e elege como ouvintes a sua filha e uma das enfermeiras.

Fala do desejo de retornar à casa, em Copacabana, das dificuldades financeiras, do descaso da sociedade em relação aos idosos, da equivocada forma de se fazer política, da falta de atenção do poder público ao que se refere à segurança, do tráfico de drogas e da desilusão amorosa.

Comenta, de forma repetitiva, sobre a sua paixão por uma mulher que não conseguia tirar da memória, apesar da confusão mental que vivenciava ao completar cem anos de vida.

O texto narrado de forma repetitiva, fiel à confusão mental do protagonista, consegue atingir o seu intento: roubar a memória de um idoso que sofre de amor e abandono.

Francisco Buarque de Holanda

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1944.

Cantor e compositor, publicou as peças Roda Viva (1968), Calabar (1973), Gota d´água (1975), e Ópera do Malandro (1979); a novela Fazenda modelo (1974) e os romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), e Budapeste (2003).

Referência bibliográfica

Buarque, Chico
Leite derramado / Chico Buarque. – São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
195p.
ISBN 978-85-359-1411-5
1. Romance brasileiro I.Título.
(R)

 

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