A Morte é uma festa – João José Reis

Apesar de esperada, a morte representa uma ruptura com o cotidiano e provoca uma série de alterações sociais.

O texto retratar acontecimentos históricos ocorridos em Salvador, na primeira metade do século dezenove. O Rio de Janeiro e Salvador eram os dois centros urbanos mais importantes do país. A população crescia com rapidez e em maior proporção nas camadas sociais mais carentes. Junto com o crescimento populacional intensificaram-se os óbitos. Morria-se, segundo os registros paroquiais, de ‘moléstia interna’, ‘ataque de peito’, ‘tisica’, ‘febre maligna’, ‘de repente’, ‘má morte’, apoplexia, hidropisia, sarampo, escorbuto e erisipela.

O país carecia de uma política de proteção social e a alternativa para eventual amparo às pessoas eram se tornarem sócias das irmandades fundamentadas em preceitos religiosos. Existiam irmandades de colonizadores brancos, de pardos e de negros. Os critérios utilizados na regulação para entrada dos membros eram o ocupacional, o econômico e o étnico-racial.

As irmandades

A maioria das paróquias abrigavam várias irmandades e estabeleciam uma relação de dependência. Tornar-se associado a essas confrarias não era tarefa fácil. Além de se submeter a um rigoroso regulamento o candidato fazia aportes financeiros e/ou patrimoniais, comprometia-se a pagar anuidades e a se submeter às formalidades e ações para com os demais associados.

Os sepultamentos eram conduzidos pelas paróquias e, em sua maioria, pagos pelas irmandades. A segregação ocorria de acordo a importância social, política e econômica do falecido. Associar-se a uma irmandade assegurava o sepultamento com ritos adequados além de prover à família a assistência financeira, médica e jurídica. As viúvas não assistidas pelas irmandades terminavam como mendicantes.

O tratamento dado ao morto estava relacionado à sua importância funcional, casta social, fatores econômicos e religiosos. As pessoas ricas e/ou poderosas eram sepultadas no interior das igrejas, as de menos recursos em carneiros e as mais pobres no entorno dos templos. As escolhas dos locais para os sepultamentos, também, eram influenciadas pelos testamentos. Muitos, na divisão patrimonial, estabeleciam valores a serem doados às paróquias e indicavam o número de missas que deveriam ser rezadas em sufrágio para as suas almas. Havia testamentos que contratavam mais de 100 missas garantindo importante benefício financeiro aos padres.

Miasmas mefíticos

Apesar do grande número de paróquias existentes em Salvador o aumento populacional virou caso de saúde pública. Com o crescimento dos óbitos a frequência nas igrejas tornou-se desagradável e insalubre, devido as ‘miasmas mefíticos’. Acreditava-se que respirar a exalação do gás gerado pela putrefação dos corpos provocava doenças nos devotos e párocos.

A partir desta contestação iniciou-se um debate entre autoridades médicas com o objetivo de buscar alternativas, mais salubre, para os sepultamentos. O movimento ganhou corpo no Rio de Janeiro e em países da Europa, notadamente na França e na Inglaterra e resultou na proibição dos sepultamentos nas igrejas e consequente autorização para construção de cemitérios afastados dos centros das cidades, em locais com adequada ventilação.

Retirar o sepultamento nas igrejas resultaria na perda de receitas para a paróquia e, quiçá, de fiéis.
As Irmandades que funcionavam nas dependências dos templos conduziam os sepultamentos dos seus associados e, por motivos diversos dos párocos, não deslumbravam bom futuro com a construção dos cemitérios privados. Poderia acarretar desprestigio e desinteresse por novas filiações. Sepultar os mortos longe das igrejas era distancia-los dos santos protetores.

Convinham aos padres a manutenção das irmandades por garantirem os recebimentos pelos funerais grandiosos e missas na intenção das almas. Acreditava-se que os sepultamentos nas igrejas e as proximidades dos mortos as imagens dos santos asseguravam a proteção não só das almas dos falecidos, mas, também, dos parentes vivos.
Somou-se aos interesses das igrejas e das irmandades a oposição das pessoas que tinham suas sobrevivências financeiras vinculadas à preparação dos funerais a exemplo dos preparadores de corpos, as carpideiras, os carregadores de defuntos, os fazedores de mortalhas mortuárias, os fabricantes de velas, os tocadores de instrumentos etc.

A Cemiterada em 25/10/1836

A saúde pública venceu o debate e Salvador proibiu o sepultamento nas igrejas. Em contrapartida autorizou a construção do primeiro cemitério particular, Campo Santo, no bairro da Federação que à época era distante do centro da cidade. Pouco depois da sua inauguração o novo cemitério foi quase totalmente destruído por um movimento social denominado ‘Cemiterada’. Além dos supostos prejuízos financeiros causados aos que tinham suas economias vinculadas a ocorrência da morte, a população não aceitava que uma companhia privada administrasse um evento tão relevante. Este e outros fatos obrigaram o governo a recuar na decisão de privatizar o citado cemitério e promoveu a sua transferência para a administração de uma irmandade.

O movimento Iluminista ocorrido na França, de caráter racional, impulsionou a aceitação da morte como um fato natural distanciando-se do caráter religioso. Desta forma, a suntuosidade dos funerais barrocos deixou de existir e as cerimônias mais simples e até intimistas passaram a conquistar o ato.

‘A Morte é uma festa’ é um documento histórico valiosíssimo. Trata-se de um texto escrito com base em pesquisas documentais feitas em igrejas, arquivos públicos, bibliotecas, centros de estudos, institutos, tabelionatos, museus, revistas, sociedades médicas, universidade etc.

Li a edição de comemoração dos 30 anos, revisada e ampliada, da Companhia Das Letras. A primeira edição foi de 1991.

Recomendo a leitura!

Informações sobre o autor

João José Reis

Nasceu em Salvador, Bahia, 24 de junho de 1952. É um dos mais importantes historiadores do Brasil. Além de ‘A morte é uma festa’ (1991) que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Literatura, escreveu ‘Escravidão e Invenção da liberdade’ (1988), Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista (1989), Liberdade por um Fio: História dos Quilombos no Brasil (1996), Rebelião Escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês (1835), Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (2008), O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (2010), Escravidão e suas sombras (2012).
É graduado em história pela Universidade Católica de Salvador, tem Mestrado e Doutorado pela renomada Universidade de Minnesota e vários pós-doutorados, que incluem a Universidade de Londres, o Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences da Universidade de Stanford e o National Humanities Center. Também foi professor visitante das seguintes universidades: Universidade de Michigan, Universidade Brandeis, Universidade de Princeton, Universidade do Texas e Universidade de Harvard. Além do Prêmio Jabuti 1992, recebeu os Prêmios Casa de las Américas (2012) e Machado de Assis (2017).

Um comentário

  1. Excelente o comentário do nosso erudito José Eduardo de Andrade sobre esse livro, pois aborda de forma suscinta e bem esplanada com seus comentários a realidade sobre a morte e como ela era comercializada pelas irmandades. Um ótimo retrato de nossa história. A recomendação sobre o livro é bem-vinda.

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