A Confraria dos Espadas
– Rubem Fonseca

Um livro de contos que aborda as relações humanas, as distorções de conceitos morais e éticos, as conveniências sociais, além do preconcebido machismo dos pseudointelectuais.

O texto agrada e diverte pela construção de personagens, aparentemente ingênuas, enriquecidas de detalhes que lembram histórias e fatos do cotidiano.

Córneas, fígado, rins e pulmões

Rubem dá um show na construção dos contos, com destaque para Anjos das marquises.

sala-de-cirurgia-1O senhor não sabe como estou feliz com a decisão de vocês, disse Paiva, aproximando-se da ambulância e verificando que não havia em toda ela nem letras nem números que a identificassem.
Paiva caminhou pelo corredor, agora acompanhado também de dois enfermeiros. Ao chegarem à pequena enfermaria ficou impressionado com a limpeza do local, como já se admirara com a imaculada brancura do uniforme dos enfermeiros. Desde que sua mulher morrera aquela era a primeira vez em que se sentia plenamente feliz. Nesse momento os dois enfermeiros o imobilizaram e o colocaram maniatado em uma maca. Surpreso, assustado, Paiva nem conseguiu reagir. Uma injeção foi aplicada no seu braço.
O que, ele conseguiu dizer, mas não terminou a frase.
Tiraram toda a sua roupa e o transportaram na maca para um banheiro. Ali seu corpo foi lavado e esterilizado. Em seguida Paiva foi levado para uma sala de cirurgia onde o esperavam dois homens de avental, luvas e máscaras protetoras no rosto. Foi colocado na mesa de cirurgia e em seguida anestesiado. O sangue retirado do seu braço foi levado apressadamente por um enfermeiro até o laboratório ao lado.
O que dá para aproveitar deste aqui?, perguntou um dos mascarados, voz abafada pelo tecido que lhe cobria a boca. As córneas com certeza, respondeu o outro, depois verificamos se o fígado, os rins e os pulmões estão em bom estado, a gente nunca sabe.
As córneas foram retiradas e colocadas num recipiente. Em seguida retalharam o corpo de Paiva.
Temos que trabalhar depressa, disse um dos mascarados, o motoqueiro está esperando para levar as encomendas.”

Palmas para os defuntos

Destaque, também, para A festa.

“Gostaria de falar com você num lugar mais discreto, disse Farah, olhando-a de maneira esquisita. Não era a primeira vez que Farah a olhava assim, e Maria Clara evitava ficar a sós com ele.
Fala aqui mesmo.
Aqui eu não posso, disse Farah entre dentes, agarrando com força o braço de Maria Clara, que só então percebeu que alguma coisa de estranho estava acontecendo, pois Farah jamais se comportaria daquela maneira em circunstâncias normais. Indecisa, ela caminhou até ao saguão e parou ao pé da escadaria que dava acesso ao andar superior.
Casemiro está morto, disse Farah.
O quê? exclamou Maria Clara.
Casemiro está morto, um enfarte fulminante, repetiu Farah.
Maria Clara se apoiou no braço de Farah e por instantes pareceu que ia sofrer um desmaio, mas logo recobrou suas forças. Como é que o Casemiro foi fazer isso comigo? ela perguntou, sentando-se num dos degraus da escada, ele viu o trabalho que esta festa me deu.
Ele não teve culpa, disse Farah.
Vamos avisar as pessoas e encerrar a festa, disse Gabriel.
Encerrar a festa? Por que não o deixamos lá sentado onde ele está, no meio da festa, e informamos a todos que Casemiro morreu e a festa prossegue, dedicada a ele. Há muitas maneiras de se homenagear um morto. Ultimamente tenho visto enterros na televisão onde batem palmas para os defuntos, disse Maria Clara.”

Um Dia na Vida de dois Pactários

“Apareceram ao lado de antigas manchas roxas e nossas
Olheiras se tornaram ainda mais escuras, mas não me
Queixei nem ela se queixou. Era um pacto de incêndio,
Contra esse espaço de rotina cinzenta entre
O nascimento e a morte que chamam
vida.”

José Rubem Fonseca

jose-rubem-fonseca-1Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1925. É contista, romancista, ensaísta e roteirista. É considerado como um dos mais originais escritores contemporâneos, cuja narrativas velozes e sofisticada exibe recheios de violência, erotismo e irreverência. É formado em Direito, e exerceu várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Venceu o Prémio Camões, em 2003, o mais prestigiado galardão literário para a língua portuguesa.

Escreveu os romances O Caso Morel (1973), A grande arte (1983), Bufo & Spallanzani (1986), Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988), Agosto (1990), O Selvagem da Ópera (1994), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997), O Doente Molière (2000), Diário de um Fescenino (2003), Mandrake, a Bíblia e a Bengala (2005), O Seminarista (2009), José (2011), e, além do A confraria dos espadas (1998), escreveu os contos Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1967), O homem de fevereiro ou março (1973), Feliz Ano Novo (1975), O cobrador (1979), Romance negro e outras histórias (1992), O buraco na parede (1995), Histórias de amor (1997), Secreções, excreções e desatinos (2001), Pequenas criaturas (2002), 64 Contos de Rubem Fonseca (2004), Ela e outras mulheres (2006), Axilas e Outras Histórias Indecorosas (2011), Amálgama (2013).

Fora os citados sobressaem: Livre Arbítrio, O Vendedor de Seguros, AA, e A Confraria dos Espadas.

Referência bibliográfica

a confraria dos espadasFonseca, Rubem, 1925-
A confraria dos Espadas / Rubem Fonseca — São Paulo : Companhia das Letras, 1998
ISBN 85-7164-841-7
1. Contos brasileiros I. Título

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